As gravações da segunda temporada de Euphoria foram interrompidas devido a pandemia do Covid-19, mas Sam Levinson encontrou uma forma de entregar novos episódios aos fãs antes da estreia do novo ano: dois especiais de fim de ano, acompanhando as duas protagonistas, Rue e Jules. O primeiro episódio, lançado em dezembro, acompanha Rue (Zendaya) numa conversa com Ali (Colman Domingo) sobre vícios, racismo e o peso de nossas ações. No segundo episódio, de Jules, o foco é outro: identidade de gênero, o peso do relacionamento em nossas ações e o amor.
No episódio, intitulado F*ck Anyone Who’s Not A Sea Blob (F*da-se qualquer um que não seja uma bolha marítima, em tradução livre), Jules vai a uma terapeuta antes das festas de fim de ano para conversar sobre os últimos meses de sua vida, seu relacionamento com Rue, Nate, seu passado com sua mãe problemática, sua identidade de gênero, como deixar Rue na estação de trem lhe afetou psicologicamente e o amor que sentiu, ou achou que sentiu, por pessoas ao seu redor.
Aqui, Levinson tem como suporte na construção do roteiro sua estrela, Hunter Schafer. E sua interferência no texto é clara deste o primeiro segundo: ninguém conhece Jules melhor que ela, e sua contribuição é fundamental para desenvolvê-la como uma mulher trans, algo que está fora da realidade do diretor. “Eu cansei de ser o que os homens esperam de mim, isso é chato pra car*lho“, diz ela em certo momento.
Numa série onde, indiscutivelmente, seu foco é a Rue de Zendaya, este especial de Natal tem como objetivo descontruir a protagonista que anda lado-a-lado com ela. É um projeto intimista, com quase todas as suas cenas gravadas dentro de um consultório psicológico, mas que é enriquecido por uma trindade irretocável: o olhar cuidadoso de Sam Levinson na direção para sua protagonista, o texto que aborda diversos assuntos pertinentes para Jules num tempo curtíssimo sem soar superficial, e Hunter Schafer, que entrega a melhor atuação de sua carreira.
Como dito, Schafer conhece Jules como ninguém. Sua confusão interna transborda. Nos primeiros minutos do episódio, a câmera se estabiliza em seu olhar, acompanhando todos os acontecimentos de sua vida nos meses passados ao som de “Liability“, da Lorde. Enquanto Jules tritura internamente seus erros, Lorde diz: “Eles dizem que sou um pouco demais para eles, que sou um fardo“. Em seguida, a psicóloga (a ótima Lauren Weedman) questiona a personagem sobre sua autocrítica: “Acho que sem essa autocrítica eu estaria perdida“, diz Jules; “Ou livre. Ambas são apavorantes“, responde a médica.
E Lorde não é o único exemplo musical que se encaixa perfeitamente dentro da obra. Rosalía e Billie Eilish cantam “se eu não fosse tão importante, por que você desperdiçaria todo o seu veneno?” enquanto Jules relembra seu relacionamento conturbado com Rue; e Arca surge com a melancólica e bizarra “Madre Acapella” quando o foco é a mãe da garota.
A edição é outro grande destaque aqui, numa montagem não-linear que visita diversos momentos da vida da garota sem ser confuso ou desconexo. A cinematografia do episódio, assim como de toda a série, é um grande acerto. Já no elenco, Zendaya surge nos momentos finais com um trabalho primordial, mas sem tempo suficiente para roubar o brilho de Schafer; aqui tem-se apenas uma protagonista, e não é a Rue.
No fim das contas, este episódio é um pedido de desculpas de uma personagem para outra. Sobre como nenhuma delas conseguia lidar com seus próprios problemas e eles se espelharam nas parceiras, como seus desejos eram tão intensos que eram difíceis de serem controlados – neste momento, Nate e Tyler aparecem em cena num desejo sexual perverso e reprimido da própria Jules – e como, nas palavras de Lorde, elas eram um fardo. “A vida normal é uma droga“, diz Jules. De fato, é sim.