Nos Estados Unidos segregados de 1954, Atticus é um rapaz negro de 22 anos, veterano da Guerra da Coreia, fã de H. P. Lovecraft e outros escritores de pulpfiction. Ao descobrir que o pai desapareceu, ele volta à cidade natal para, com o tio e a amiga, partir em uma missão de resgate. Na viagem até a mansão do herdeiro da propriedade que mantinha um dos ancestrais de Atticus escravizado, o grupo enfrentará sociedades secretas, rituais sanguinolentos e o preconceito de todos os dias. Ao chegar, Atticus encontra seu pai acorrentado, mantido prisioneiro por uma confraria secreta, que orquestra um ritual cujo personagem principal é o próprio Atticus.
A única esperança de salvação do jovem, no entanto, pode ser a semente de sua destruição — e de toda a sua família.
E esta é apenas a primeira parada de uma jornada impressionante.
Estruturado ao mesmo tempo como uma coletânea de contos e um romance, Território Lovecraft apresenta, além de personagens memoráveis, elementos sobrenaturais, como casas assombradas e portais para outras realidades, objetos enfeitiçados e livros mágicos. Um retrato caleidoscópico do racismo — o fantasma que até hoje assombra o mundo —, a obra de Matt Ruff une ficção histórica e pulpnoir ao horror e à fantasia de Lovecraft para explorar os terrores da época de segregação racial nos Estados Unidos.
A forma como o autor utiliza o racismo e seus desdobramentos para tornar a narrativa mais complexa é muito interessante, ele não se utiliza de panfletagem vazia jogada na história, a questão está intrínseca e atrelada a narrativa de forma bem feita e bem construída.
A narrativa torna-se mais interessante, profunda e reflexiva ao mesclar o horror fantástico/sobrenatural com o medo real vivido pelos personagens no cotidiano. Como, por exemplo, no conto que explora uma clássica história de mansão mal assombrada a protagonista é uma mulher negra recém chegada a um bairro majoritariamente branco. O terror que ela irá enfrentar com as ameaças constantes dos vizinhos a sua vida é muito mais assustador do que o fantasma com quem ela precisa lidar dentro da casa.
O homem branco é mais temido do que qualquer alma penada.
Essa sacada de pegar elementos do horror clássico ao mesmo tempo que se trata de problemas sociais reais, de forma que tudo se misture de uma forma criativa e inteligente, é o diferencial dessa história, o que a torna original.
O senso de coletividade que permeia toda a história faz um contraponto com a obra de Lovecraft, onde em sua maioria trazem um personagem sozinho desvendando os mistérios. Aqui neste livro encontramos toda uma comunidade de amigos e familiares que se unem para superar as adversidades que lhes são impostas ao mesmo tempo que lidam seus próprios fantasmas. Cada um com sua história e personalidade que tempera mais e mais a narrativa com complexidade.
Para quem não conhece muito o cenário dos anos 50 nos Estados Unidos é o seguinte: já fazia mais de um século desde a abolição dos escravos, mas algumas partes do país – principalmente o sul – ainda era EXTREMAMENTE segregacionista, de maneira tão opressiva que leis estaduais e municipais foram criadas para impedir todas as pessoas de cor de frequentarem os mesmos espaços e ambientes da população branca.
O racismo foi institucionalizado.
As conhecidas “Leis Jim Crow” perduraram por muito tempo e só vieram a cair efetivamente por volta de 1965, quando começam a entrar em vigor as leis dos direitos civis e do direito ao voto.
Foi um período grotesco e nojento da história da humanidade, que deixou vestígios nos dias de hoje contra os quais a comunidade negra ainda tem que lutar. Infelizmente.
Um ponto bem acertado foi basear essa narrativa sobre segregação e preconceitos – que se propõe a criticar os horrores e incoerências da época que infelizmente se repetem nos dias atuais – na obra de um autor abertamente racista e xenofóbico (entre outras coisas) que foi Lovecraft. Este é apenas mais um assunto abordado ao longo do livro que pode gerar muito debate e reflexões entre os leitores: de que forma é possível apreciar a obra e a contribuição de um autor para a cultura pop e ao mesmo tempo separá-las de suas opiniões tóxicas e controversas (J.K. temos visita!) Haja leitura crítica.
No título deste livro está implícito que o plano de fundo se apoiará na obra lovecraftiana com suas criaturas cósmicas, seitas bizarras, viagens no tempo e dimensões etc. Mas a primeira vez que a expressão aparece na história acontece quando Atticus se depara com uma estante cheia de livros e ao encontrar uma prateleira de títulos conhecidos ele a chama de “Território Lovecraft”, pois contém as obras de todos os autores que fizeram pastiches (obra literária/artistica em que se imita abertamente o estilo de outro autor/artista) em cima da literatura de Lovecraft – como August Derleth, Robert Bloch e Ray Bradburry – de forma que é possível notar a criação de uma metalinguagem de Matt Ruff, uma vez que este livro trata-se também de um pastiche.
Enfim, é complicado falar deste livro sem dar spoilers. A verdade é que a história é recheada de referências históricas e da cultura pop, agrega muita bagagem interessante e traz muitos pontos para debate e reflexão. Tudo isso sem deixar a escrita pesada ou pretenciosa. Pelo contrário, texto é dinâmico e a trama super envolvente.