O caso do homem que foi injustamente condenado após falsa acusação da autora Alice Sebold

No final do ano passado, um homem negro acusado de furto foi indenizado em R$20 mil após argumentar que sofreu constrangimento e humilhação pela imputação de um crime que não cometeu. O caso ocorreu em Brasília, no Distrito Federal.

Apesar de lamentável, a situação é recorrente em todo o mundo. Constantemente, pessoas negras são vítimas de falsas acusações que refletem o racismo enraizado na sociedade. Não bastassem os danos psicológicos e morais que essas ocorrências podem ocasionar na vida de uma pessoa, grande parte delas não conseguem provar sua inocência e são submetidas a condenações impiedosas.

Um caso famoso que reflete essa problemática envolve a autora norte-americana Alice Sebold, cuja obra mais popular é o livro “Uma Vida Interrompida“, que inspirou o filme “Um Olhar do Paraíso“, protagonizado pela indicada ao Oscar Saoirse Ronan.

O caso

Em 1999, Sebold lançou um livro intitulado “Sorte – Um Caso de Estupro“, no qual ela relata um episódio de violência sexual quando tinha apenas 18 anos de idade e estudava na Universidade de Siracusa, em Nova York. Meses após o caso, a escritora relatou ter visto um homem negro na rua que ela pensava ser seu agressor e o denunciou à polícia.

Tratava-se de Anthony Broadwater, de 20 anos de idade, que foi levado à delegacia e negou todas as acusações. Durante o processo de identificação visual, Sebold foi apresentada a cinco homens suspeitos do crime e apontou outra pessoa, que não Broadwater, como o autor do estupro. Ainda assim, Broadwater foi levado a julgamento e, no tribunal, foi identificado por Sebold como seu agressor.

Apesar das inconsistências nos depoimentos da vítima, Broadwater foi condenado em 1982 com base no relato dado por ela no tribunal e em uma análise microscópica do seu cabelo, hoje em dia considerada ultrapassada e ineficiente. Depois de ser libertado da prisão em 1998, Broadwater ainda permaneceu no registro de criminosos sexuais. Estar fichado desta forma, o que no país é um registro público, costuma fazer com que as oportunidades de emprego diminuam drasticamente e o tratamento da sociedade em geral seja marcado pela desconfiança.

Mesmo quando se casou com uma mulher que acreditou em sua inocência, Broadwater se recusou a ter filhos com ela devido a seu trauma. “Tínhamos uma grande discussão às vezes sobre crianças, e eu disse a ela que nunca, jamais poderia permitir que crianças viessem a este mundo com um estigma nas minhas costas”, contou ele.

A reviravolta

Em 2021, a Netflix anunciou que estava desenvolvendo uma adaptação de “Sorte – Um Caso de Estupro“, que seria protagonizada Victoria Pedretti, de “You“. No entanto, o longa perdeu o financiamento após o produtor executivo Timothy Mucciante abandonar o projeto alegando preocupação sobre os eventos do livro e levantar dúvidas sobre o caso.

Mais tarde, ele contratou um investigador particular para apurar o que realmente aconteceu. O detetive, então, encontrou provas e pediu análises forenses mais modernas do que as de 40 anos atrás. Suas descobertas fizeram as autoridades determinarem que existiam falhas sérias na apuração realizada em 1982, que colocavam em dúvida a participação de Broadwater no crime.

“Certas coisas me pareceram estranhas — especificamente o procedimento de identificação em que Alice escolheu a pessoa errada como seu agressor, mas eles condenaram Broadwater“, disse Mucciante ao programa Today, da BBC. “Foi uma terrível tragédia, não apenas em termos do infeliz ataque sofrido por Alice, mas também o tipo de ataque metafórico sofrido por Anthony Broadwater, que passou 16 anos na prisão e 23 anos depois como um criminoso sexual registrado“, continuou o produtor.

A revisão do processo

Em 2021, Broadwater entrou com uma ação contra o estado de Nova York por condenação injusta. O processo alegou má conduta flagrante da polícia e do Ministério Público e pediu uma indenização de milhões de dólares por condenação e prisão injustas e uma lista de danos mentais, emocionais e financeiros provocados à vítima.

Em audiência, o promotor distrital do condado de Onondaga, William J. Fitzpatrick, declarou: “Você sabe, não vou manchar este processo dizendo que sinto muito. Isso não resolve. Isso nunca deveria ter acontecido. E direi ao Sr. Broadwater que lhe garanto que isso nunca mais acontecerá”.

A justiça dos EUA, então, cancelou a condenação de Broadwater e o retirou do registro de criminosos sexuais.

As desculpas da autora

Em dezembro de 2021, Sebold enviou uma nota ao site Medium comentando sobre a decisão da justiça estadunidense. “Continuarei a lutar contra o papel que involuntariamente desempenhei dentro de um sistema que enviou um homem inocente para a prisão. Sinto muito, acima de tudo, pelo fato de que a vida que você poderia ter levado foi injustamente roubada de você, e sei que nenhum pedido de desculpas pode mudar o que aconteceu com você e nunca mudará”.

Ela continuou: “Por toda a minha vida, sempre tentei agir com integridade e falar de um lugar de honestidade. Assim, eu digo claramente que estarei arrependida pelo resto da minha vida pelo fato de que, na busca por justiça, meu caso resultou na convicção ilegal de Broadwater, que não foi só condenado a 16 anos atrás das grades, mas a uma sentença perpétua por conta da ferida e da estigmatização”.

Em entrevista ao The New York Times, Broadwater respondeu ao pedido de desculpas de Sebold e disse se sentir “grato e aliviado” pelo texto compartilhado pela autora. “Foi preciso muita coragem, e acho que ela é corajosa e está resistindo à tempestade como eu. Fazer essa declaração é uma coisa forte para ela fazer, compreendo que ela foi uma vítima e eu também fui uma vítima”.