Explicação do final de “Beyond The Sea”, episódio de “Black Mirror”
Alguns episódios da nova temporada de “Black Mirror” podem pecar na abordagem de como a tecnologia impacta na vida dos seres humanos. Felizmente, “Beyond The Sea“, um dos grandes destaques da nova leva de episódios da série, não é um deles.
Contextualizando
Na história, David e Cliff são dois astronautas que vivem na década de 1960 e são enviados a uma estação especial para participarem de uma missão que durará seis anos. Para não ficarem mais de meia década longe de suas famílias, eles se submetem a um procedimento que replica seres humanos. Dessa forma, seus clones podem ficar na terra enquanto eles seguem executando a missão no espaço.
Acontece que, embora os corpos físicos dos astronautas sejam duplicados, eles possuem uma só consciência. Sendo assim, por mais que existam dois corpos, um no espaço e outro na terra, apenas um deles pode agir conscientemente por vez. Para isso, eles usam uma espécie de link que permite que a consciência de um corpo seja transferida para outro quando eles quiserem. Dessa forma, eles podem trabalhar no espaço e, quando for oportuno, passar alguns dias na terra vivendo suas vidas normais.
Tudo ocorria bem até que, após dois anos de missão, uma seita que se intitula amante da natureza invade a casa de David e mata toda sua família, que inclui sua amável esposa e seus dois filhos. Além disso, a seita também destroí o clone de David, fazendo com que apenas seu corpo físico que está no espaço “sobreviva”. Dessa forma, a vida de David fica limitada à estação espacial, visto que ele não tem mais nenhuma réplica de seu corpo a qual ele possa habitar.
O começo do caos
Após perder a família e a réplica, David fica em estado catatônico, sem conseguir fazer absolutamente nada e se negando a interagir com Cliff. A esposa deste, então, sugere que o marido permita que David use seu link para retornar à terra por uma hora, pois esse contato pode fazer com que ele sinta que faz parte do mundo novamente e o ajude no processo de luto. Cliff compartilha a ideia com David, que prontamente aceita e se mostra grato pela oportunidade dada pelo amigo.
Após semanas isolado na nave, a consciência de David retorna à terra no corpo de Cliff. A experiência é satisfatória e David sugere que ele possa realizar o procedimento mais vezes, para que assim ele possa pintar um quadro da casa da família como retribuição à ajuda do amigo. As visitas de David, então, tornam-se cada vez mais frequentes, e todos parecem satisfeitos com a situação — Cliff por achar que está tirando o amigo da foça,e David por estar conseguindo se reconectar com algo após perder todos que amava.
As coisas em “Beyond The Sea” começam a ficar complicadas quando, durante essas viagens semanais, David toma a liberdade de agir como se fosse Cliff. Ele passa a mão no corpo de Lana, esposa do amigo, apalpando seus peitos da mesma forma como ele fazia com sua falecida mulher. Além disso, na cena seguinte, ele bate em Henry, filho do casal, após a criança manchar a pintura na qual ele vinha trabalhando há semanas.
A quebra de confiança
Inconformada com as atitudes de David, Lana relata sobre a agressão que o filho deles sofreu, mas Cliff ignora a esposa, afirmando que a criança merecia ser repreendida. No entanto, em um dos episódios em que David está habitando seu corpo e ele fica sozinho na nave espacial, Cliff decide olhar o cômodo onde o amigo dorme e acaba descobrindo diversos desenhos que David fez de Lana, sua esposa, incluindo alguns retratos em que ela aparece despida.
Furioso, Cliff confronta a esposa questionando se ela posou nua para que David a desenhasse. Ela nega, mas conta para o marido que foi assediada pelo colega de trabalho dele. Após retornar para a nave espacial, Cliff confronta David sobre o assédio que ele cometeu e afirma que ele nunca mais usará sua tag para ir à Terra, pois o laço de confiança entre eles havia sido quebrado.
O que aconteceu no final?
Semanas se passam e Cliff parece ter se reaproximado de Lana e de Henry. Através de um relógio, ele recebe um alerta de emergência da nave espacial, e decide transferir sua consciência para o corpo do espaço a fim de averiguar o que estava acontecendo. Ao chegar lá, ele é informado por David que um dos tubos da nave havia quebrado e eles precisavam consertar.
Cliff, então, retira todos os seus pertences e, devidamente equipado, sai da câmara para averiguar o problema. Nas profundezas escuras do espaço, ele percebe que era uma informação falsa emitida pelo computador e que não havia tubo nenhum quebrado. Ele contata David para que a câmara seja aberta e ele possa retornar para dentro da nave espacial, mas o amigo permanece em silêncio por alguns segundos.
Quando David finalmente aparece, Cliff o confronta e pergunta por que ele demorou tanto, e David responde que estava no “banheiro”. Após se despir do equipamento, Cliff começa a vestir seus acessórios outra vez, até que percebe que a tag que vincula sua consciência à sua réplica não está na bandeja, como ele havia deixado. David, então, tira a tag do bolso, e Cliff percebe que o amigo usou o material para ir à Terra.
Desesperado com o que David possa ter feito, Cliff imediatamente transfere sua consciência para seu clone e, ao acordar em sua casa, percebe que suas mãos estão ensanguetadas, assim com toda a casa está coberta de sangue. Cliff, então, começa a chorar desesperadamente à medida que caminha pela casa e descobre que seu amigo matou toda sua família.
Por que David não matou Cliff?
Em uma das cenas do episódio, é mencionado que a missão precisa de duas pessoas na nave para funcionar. Quando a nave apresenta algum problema, um deles, por exemplo, precisa abrir a porta da câmara e fazer a supervisão enquanto o outro está do lado de fora. David sabia que, se matasse Cliff, a missão não daria certo, então ele optou por matar a família do colega de trabalho a fim de deixá-los em pé de igualdade.
Por que as réplicas não foram para o espaço?
Certamente o maior questionamento a respeito do episódio é por que os humanos foram enviados ao espaço, e não suas réplicas. Bom, o episódio não fornece uma explicação direta para isso, mas dá abertura para que inúmeras suposições sejam criadas para justificar essa escolha.
Se as réplicas tivessem ido para o espaço e alguma das máquinas apresentasse algum problema, seria mais difícil de consertá-las. Com elas estando na terra, qualquer eventual problema que viesse a acontecer seria mais fácil de ser resolvido. Imagina se alguma das réplicas começa a apresentar defeito? Seria difícil para o governo enviar alguém para consertá-la lá em cima, não é mesmo? É importante mencionar também o fato das réplicas poderem precisar de alguma manutenção regularmente, o que corrobora com a ideia delas precisarem estar acessíveis para passarem por esses procedimentos periódicos.
Além disso, como mencionamos anteriormente, Cliff deixa claro em uma das cenas que a nave só funciona com duas pessoas. Caso uma das réplicas desse defeito e não pudesse ser consertada, a outra não teria mais utilidade e também “não sobreviveria”. Ou seja, na eventualidade de algum dos clones parar de funcionar ou apresentar algum problema que futuramente leve a isso, o governo perderia o investimento de milhões de dólares que foi feito na missão espacial.
Um outro detalhe que pode explicar essa questão é o fato das máquinas serem constituídas de algum material que as impeçam de sobreviver ao vácuo do espaço. Nas cenas em que Cliff sai da nave espacial, observamos que ele tira todos os seus acessórios e os coloca em uma bandeja. Se as réplicas forem constituídas do mesmo material, isso explica por que os humanos foram preferenciais à missão.
O que acontecerá com Cliff?
Embora o final de “Beyond The Sea” obviamente deixe o episódio em aberto, não é difícil imaginar o que vai acontecer. Com a réplica de Cliff sendo aquela que matou sua esposa e filho, é muito provável que ele não consiga retornar à Terra usando seu clone, pois corre o risco dele ser preso pelos crimes cometidos pelo amigo. Dessa forma, a réplica é quem deve ser condenada pelos assassinatos, sendo permanentemente desativada.
Com isso, nenhum deles pode mais retomar à Terra, visto que suas réplicas não estão mais em funcionamento — pelo menos não pelos próximos quatro anos, tempo restante da missão. De certa forma, Cliff e David assumem agora a mesma posição de perda e solidão, sendo dois viúvos que compartilharão o espaço pelos próximos anos, com um deles sendo forçado a viver ao lado do assassino que matou sua família. Isso é Black Mirror.